segunda-feira, 23 de maio de 2011

O silêncio ensurdecedor

    Feia como a peste, mal vestida como um cão maltratado pela sarna e dona de um desengonço de garnisé. Era dessas que nunca passavam sem receber um comentário malvado, mas sempre ao passar diante da obra, os pedreiros faziam festa, jogavam confete, assoviavam, bradavam a musa da hora. A construção civil é o melhor psiquiatra para as mulheres da baixa autoestima, o melhor templo para as áridas de beleza. É no reino do cimento e da cal que elas encontram o refresco para a alma.



   Apesar de tanta feiúra, Brígida namorava. Um sujeito do tipo que as moças fazem prece para Santo Antônio enviar. Além de charme, Hermeto gozava da fama de santidade. Dizia-se: “Não trai nem com o rabo do olho.” Todas as moças da faculdade, do bairro, da paróquia e da família debruçavam-se sobre sua beleza com os golpes mais baixos. Umas mostravam as canelas, outras as pernas e aqueloutras os dotes. Mermetinho, o santo, não movia uma palha diante delas, toda a atenção era da sua Brejeirinha.


- Você me ama, Hermeto Silva?

- Pimpolhinha, é lógico. Por que não amaria? - com aquela doçura que daria uma crise de hiperglicemia num sujeito a três quilômetros de distância.
 
- A sério? - inquiriu tentando fazer uma cara feia, como se fosse possível mais.

- Por que a dúvida, mulher? - registrando na voz uma tensão.


- Sei lá, você é muito bonito. É amor mesmo ou é dó?


- Ah, mas vá a … inventou os impropérios das mais várias variedades variadas, até dona Celeste veio alvoroçada acudir o filho que não conseguia parar.


- Que que há aqui, meu povo? - com aquele sotaque de Recife que só ela sabia preservar nas Minas.

- Brígida não acredita que a amo, mamãe.

- Mas tenha dó, não é, minha filha? Venha cá, vamos ali me ajudar na cozinha.



   A sogra arrastou a nora para a cozinha de tal maneira que nem Hermeto viu o fim que levara sua princesa. Pouco se importou, estava ainda na crise de nervos, sacou logo um cigarro do maço e fumou energicamente enquanto tomava a talagadas o café forte.


- Filhinha, isso não se faz. Inquirir um homem dessa feita é pecado, grave, sem perdão ou remissão. Ou você quer perdê-lo ou quer largá-lo, só pode.

- Não! Sabe o que é, Dona Celeste? É que eu não me sinto segura.

- Insegurança nasce é quando a gente está pra fazer a merda que estamos com medo que façam conosco. Disse terminante Dona Celeste e voltou os olhos pro quiabo que picava com uma dedicação absurda e avara, e esqueceu a nora naquele silêncio sepulcral que persegue um náufrago. Agora, minha filha, volte para aquela sala e dê um achego e um cheiro no Mermeto, porque ele deve estar fulo, e me deixe em paz terminar o almoço.


    Volta a feia arrastando-se sobre as pernas tortas e carregando nos ombros todas as culpas do século. Freud, Lacan e Jung curvariam-se impotentes diante de tanta tristeza.


- Bonitinho, me desculpa, tá? - alisando com as unhas a nuca do namorado.

- Vá lá, desculpo, mas só porque você é muito bonitinha.

- Bo-ni-ti-nha? 

- Ah, tenha a santa paciência, Brígida. Vamos largar de lenga-lenga?


   Percebendo a guerra civil instalando-se, Dona Celeste apavorada põe a mesa e ainda tira da adega o melhor vinho da casa.




   No outro dia Brígida acordou achando que era francesa e tinha sobrenome Bardot. Arrumou-se minuciosamente. Longa espera até escolher o vestido, as meias e os sapatos. Maquiou-se como se fosse em visita oficial a Casa Branca. Saiu de casa numa marcha que achava elegante mas, a bem da verdade, lembrava bastante os cavalos do Sete de Setembro. Procurou ávida por uma construção perto de casa. Nenhuma. Nem um martelo batia, nenhuma betoneira rangia. Não se ouviu nem um solitário assovio sertanejo. Tomou o primeiro ônibus para o Centro, no lotação ensaiava todos os gestos sensuais possíveis. Nenhum olhar, nem de pena. Melancolia profunda. Desceu abatida no primeiro ponto cheio que avistou na esperança de uma cantada barata, um cochicho. Nem dos olhares foi digna, um torpor cinzento tomava conta da multidão.


   Longe ouviu o som seco de uma britadeira. Em desespero arrancou os sapatos e correu em direção aquilo que era música para seus ouvidos. Passou sobre tudo que estava pela frente, esbarrou nas velhas senhoras sem pudor algum, jogou no chão o policial e pouco se importou com a gritaria de desrespeito à autoridade, fez sambar dentro de um bueiro toda a quinquilharia de um hippie fedegoso, mas finalmente achou o templo onde livraria todo seu sofrimento. Empertigou-se, elevou o queixo e triunfante avançou sobre a calçada protegida pelos tapumes, na expectativa de um arrulho desrespeitoso que fosse.



    Silêncio profundíssimo. As marretas batiam impiedosas, rangia a betoneira, britadeiras socavam forte o chão, as latas de cimento subiam tonitruantes corda acima. Era a sinfonia fúnebre da uma mulher que não foi notada. Do cavo de toda a mudez, Brígida buscou forças para o mais convidadito fim. Jogou-se, lembrando-se das aulas de balé, num grand jeté de encontro ao ônibus que descia devorando o asfalto e não fez muito esforço para engolir a bailarina.



   Uma multidão ajuntou-se em alarido ensurdecedor.



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