domingo, 22 de maio de 2011

O último dia de Notini.

Notini sentou-se à mesa, hirto e lacônico, como fazia todos os dias. A garçonete, feia e velha, chegou-se a ele, sempre como quem nada quer, e perguntou – sabendo a resposta – se aceitava algo. Fora assim desde o primeiro dia que aquela figura sentara-se ali até o último, no caso aquela manhã. O feiúme da velha, desde sempre velha, senhora assustava, mas logo o café sanava aquele desespero. Sempre dois dedos de café. Se passava, Notini cuspia o restante numa planta dessas que ornam e protegem essas bibocas de Centros. De toda a feiúra do local, salvava aquele canto cativo em que sentava todas as manhãs. A toalha salpicada de furos fumígenos e borras de molho inglês.

Amara mulheres como quem escolhe um sapato na vitrina, escolhia pelo visto. Tivera mancas, zarolhas, caolhas, pernetas. Daquelas que cambam pra direita, pra esquerda. Mas sempre amara entregue, por mais bizarra que fosse a mulher.

Apesar de tanto amar, Notini morria sozinho naquele dia. Amou todas em silêncio, nunca mais que os triviais aconchegos de ombro, carinhos fortuitos ou crispar de sobrancelhas. Tudo muito frugal. Pensar em casamento ele sempre pensou, mas as mulheres eram ou muito ou pouco. Em namoro, jamais. Era tempo de menos. Em noivado? Que nada, Notini queria logo o casamento, talvez por isso morria dialogando com os próprios sapatos todas as manhãs.

Era o nobilíssimo sujeito meio-termo, o sorriso de bêbado que não tem dona. Escanhoado à espartana, nunca passava as pesadas portas do apartamento com uma leve penugem que fosse cobrindo-lhe o rosto. Era um obsessivo sem tamanho e bipolar crônico. Pela manhã um dândi, à tarde um segurança eslavo de prostíbulo e à noite um poeta incoformado. Media os passos pelos riscos no cimento e contava os dedos dos parceiros de assento no ônibus até ter certeza que eram dez.

No dia em questão contara 11 dedos nos pés de uma bela loura. Apaixonou-se. Jamais havia visto uma mulher com onze unhas pintadas a verniz vermelho. Foi cabal, sacou logo todo o repertório de cantadas e escolheu uma:


- A senhorita mora no bairro Castelo?


- Moro - respondeu atônita a Cicciolina do grotão.

- Tudo se explica.

- Hum - fez com um misto de pena e leve interesse.

- Pelo horário imagino que acaba de sair do serviço.

- Sim - secamente.

- Gostaria de dois dedos de café?

- Prefiro vinho à meia-luz - disse lancinante com um olhar típico de atriz pornográfica aposentada. Cravou os dentes superiores no lábio inferior e fez biquinho. O ápice de toda sua  cavernosa sensualidade.

- A minha casa ou a sua? - Ousou o poeta.

- Se houver banho quente e uma cama de lençóis de linho branco, a sua - agora dizia com o furor de uma colegial.

- Banheira de louça francesa do século XIX e cama entalhada de mogno.

- Lençóis de linho puro?

- Algodão.

- Serve - já refeita a pose de diva falida.

Fez-se um silêncio enorme no ônibus suburbano. Batida mortífera logo adiante. Três mortos e o trocador fazia questão de tornar público que entre eles constavam um decapitado e um corpo nu. "Que desperdício" comentou com o homem barbudo e cheirando a lavanda. "Se eu fosse Deus não deixava morrer", completou.

- Meu ponto é o próximo. Por Deus, decida-se, homem.

- Desça dois pontos adiante. Passamos na padaria, compramos o vinho, a panhoca dormida e um lata  de atum. Nada mais. Tenho fundos, mas têm uma causa nobre que os espera.

Saltaram de braços dados, como um idílico casal. Ele olhava incessante para o décimo primeiro. Imaginava as fantasias mais variadas.

- Entre e compre, fumarei um cigarro. Diz a musa retirando o maço da bolsa.

- Nem um beijinho? - Ele mesmo espantava-se com essa novidade: a humilhação.

- Deixe de tolices, velhote. Compre as coisas e vamos subir para o seu apartamento. Quero ver em que espécie de toca se esconde uma criatura como você.

Entrou, pegou, pagou e saiu sem uma palavra sequer. Seguem até a porta do prédio sem moverem os lábios em qualquer direção, nem os olhos. Ela ansiosa pelo palácio, ele ansioso por pele.

- Boa noite, senhor Notini - diz o pobre cão que faz papel de porteiro.

- Boa noite, Alvares.

Abre a porta pesada de túmulo do apartamento e entram.

- Vou esquentar a panhoca, pegar as taças e abrir o enlatado. Dois palitos.

- Hum.

As paredes eram cobertas por um papel dos tempos que quem mandava ainda usava barbas, mas ainda havia alguma nobreza naquele apartamento. Os móveis todos de mogno e entalhados a mão cheiravam a dinheiro escondido em algum canto. Sobre uma mesa grande havia uma montanha de livros e copos vazios, sinal de que mulher não regia a casa há muito. Dependurados vários quadros de ancestrais figuras.

- "Quem pagará as flores quando eu me for" - aparece Notini tentando ser poético.
- Não sei se pagarei, mas deve haver alguém que goste de você ou queira puxa-saco.

- É sempre dura assim? - Mais um rompante de idiotia e arrastar aos pés que ele não conhecia no seu ser

- Dá cá o copo - tomou o vinho numa talagada, resquício da pobreza que não se anulara dentro do templo vitoriano que era a casa de Notini.

Na cabeça de nosso pitoresco personagem houve uma saraivada de hormônios, segurou firme no braço da princesa do latão e do cobre e forçou-lhe um beijo desajeitado com tentativas de ser cinematográfico. A pose foi um monólogo.


- Vamos, me mostre os lençóis de algodão... - Disse fugindo do mar de saliva.

Entraram para o quarto e por trás fecharam a porta, para forçar uma intimidade de casal, afinal sabia que seria sua primeira e última noite com uma mulher de revistas, com o brinde do décimo primeiro dedo.

Naquele dia Notini acordara com a ave do mau agouro pousada no ombro. Uma tristeza profunda. Pra animar a alma jogou no bicho, tomou um bourbon falsificado num café desses que as pessoas de alta cultura frequentam, comprou dois sapatos novos e inscreveu-se numa aula de tango (viu uma resenha de "O último tango em Paris" numa revista e achou ser preciso só dançar para conseguir chegar ao que era mostrado na capa). Fez o escambau para sair da sorumba.

A Nona de Beethoven soava desde o quarto. Súbito, um grito de horror. No justo momento que Notini ia beijar o fulgor de sua paixão, a décima primeira unha envernizada, a delicada atriz falida chuta-lhe o queixo e a cabeça do mancebo voa de encontro à panhoca e as taças que estavam sobre o toca discos. Junto ao pão e o vinho veio o sofrimento convulsivo dos que morrem à cata dos desejos. O LP arranhado tragicamente repete o clímax do terceiro movimento da Ode à Alegria:

"Quem já conquistou uma mulher amável 
rejubile-se conosco!"

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