segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tirano das horas

A um mestre,
sem nenhum carinho.

Longa espera na prisão do tempo,
antes fosse a morte ou degredo,
tanto melhor seria morrer queimado
ou afogado no azeite fervente.

Quão milenares são os segundos
quando o o cruel carrasco,
com as garras amoladas, lentamente
crava os ponteiros atemporais
em meu dia que começara tão bem

Morre o dia, morre o ânimo
morrem o tempo e o relógio,
quando abre a nefanda boca
o tirano das horas.

Tal qual a lástima das guerras e pestes
é a aula do tal homem do tempo.

Langorosa penúria vagarosa,
em que os minutos são balaços convulsivos:
matam, pois, cirúrgica e dolorosamente
cada esperança de término ligeiro.

sábado, 28 de maio de 2011

Fugaz

Ele ouve seu nome. São apenas dois metros, os passos parecem saltos. Escala a imensurável escada, chega ao topo. O palco, a ribalta, as luzes, o imenso público. O piano é de uma marca alemã, até então desconhecida. É como se fosse seus últimos momentos de vida. Tudo depende de uma boa apresentação.

 Olha os dedos, estrala-os com os braços arqueados em frente ao tórax. ‘’Estão rindo de mim’’, pensa. “Minha camisa deve estar amassada ou então a calça está torta”. Sofre. Ele sua a cântaros, sente cada gota escorrer pelo dorso e finalmente deitar-se no cós da calça.

 Chega o momento. Começa a música, o primeiro movimento já foi tocado. O músico começa a se desfazer do corpo, apenas suas mãos estão no piano. Desprendeu-se. Entra no piano. A principio os martelos o incomodam. Estão todos lá dentro. Não entende como coube tanta gente. Estranha o fato de todos que estão ali não estarem mais vivos. Seu avô, sentado a um canto, lê um livro sobre política. Sua avó faz biscoitos para receber os parentes, ectoplasmas familiares. Enfadado o avô larga o livro em um canto, saca o violão, escondido atrás do quinto martelo, e desenterra canções. A cada momento parece chegar mais convidados da suposta festa do além. Um antigo conviva da casa dos avós traz consigo uma caixa de fogos de artifício, sua esposa traz morangos. Um coral surge por detrás do décimo martelo, têm seus setenta anos coroando a música. Pensa ‘’Quem mais virá? Não caberá mais ninguém.” Alguém bate na madeira superior do piano, ele abre e, para seu espanto, é ele mesmo. De súbito volta para o seu corpo e toca o último acorde, o ar começa a faltar, uma dor fortíssima no peito, não escuta mais nada, apenas vê os movimentos desesperados do maestro. Um último suspiro, uma última visão semi-cerrada: uma bela jovem, um sorriso no canto dos lábios. Uma paixão que durou segundos e morreu com ele. Fugaz como sua apresentação. As cortinas se fecham para o artista. Não demora, abrem-se novamente. Uma harpista de roxo termina a composição que o pianista não terminara.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Amor a crediário

- Alô.
- Boa tarde, senhor.
- Boa tarde – diz sem nenhuma ênfase.

Era ela? Não poderia ser, tivera notícias de que casara-se com um magnata do Mangabeiras há dois anos. Essas ratas que andam atrás do dinheiro não trabalham com telemarketing depois de consumir queijo Camembert.

- O senhor possui cartão de crédito ou conta em algum banco?

- Não, carrego meu dinheiro gordo na carteira e o que não cabe guardo no cofre.

- Não lhe interessaria uma conta no nosso banco, senhor? Veja bem as vantagens são....

- A vantagem é que não tenho uma rata turca para sugar até meus últimos tostões. - Interrompe ele de sopetão.

- Mas as ruas andam cheias de criminosos, não seria melhor guardar seu dinheiro em uma conta e sacá-lo sempre que quiser em qualquer uma de nossas agências, que, inclusive, são muitas.

- Nos lugares que frequento as mulheres é que são verdadeiras criminosas. Ao menor descuido sacam-lhe a carteira. E não sou lá de frequentar camas de prostíbulo.

- Nosso banco possui um plano surpreendente de cartão de crédito. Sem anuidade e bônus para os clientes que usam com frequência.

- Novamente, minha senhora? Sou um cético, não há créditos que me encantem.

- Mas veja, senhor, há mais...

- Sem mais, nem menos, minha cara. O que tenho para tratar com você já está findo.

- Mas...

- Agradeço sua insistência. Tenha uma boa tarde. Passe bem.

- Eu ainda te amo.

- Ame o meu dinheiro à distância, não sou louco de entregá-lo de mãos beijadas. Faça valer a pena.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O silêncio ensurdecedor

    Feia como a peste, mal vestida como um cão maltratado pela sarna e dona de um desengonço de garnisé. Era dessas que nunca passavam sem receber um comentário malvado, mas sempre ao passar diante da obra, os pedreiros faziam festa, jogavam confete, assoviavam, bradavam a musa da hora. A construção civil é o melhor psiquiatra para as mulheres da baixa autoestima, o melhor templo para as áridas de beleza. É no reino do cimento e da cal que elas encontram o refresco para a alma.



   Apesar de tanta feiúra, Brígida namorava. Um sujeito do tipo que as moças fazem prece para Santo Antônio enviar. Além de charme, Hermeto gozava da fama de santidade. Dizia-se: “Não trai nem com o rabo do olho.” Todas as moças da faculdade, do bairro, da paróquia e da família debruçavam-se sobre sua beleza com os golpes mais baixos. Umas mostravam as canelas, outras as pernas e aqueloutras os dotes. Mermetinho, o santo, não movia uma palha diante delas, toda a atenção era da sua Brejeirinha.


- Você me ama, Hermeto Silva?

- Pimpolhinha, é lógico. Por que não amaria? - com aquela doçura que daria uma crise de hiperglicemia num sujeito a três quilômetros de distância.
 
- A sério? - inquiriu tentando fazer uma cara feia, como se fosse possível mais.

- Por que a dúvida, mulher? - registrando na voz uma tensão.


- Sei lá, você é muito bonito. É amor mesmo ou é dó?


- Ah, mas vá a … inventou os impropérios das mais várias variedades variadas, até dona Celeste veio alvoroçada acudir o filho que não conseguia parar.


- Que que há aqui, meu povo? - com aquele sotaque de Recife que só ela sabia preservar nas Minas.

- Brígida não acredita que a amo, mamãe.

- Mas tenha dó, não é, minha filha? Venha cá, vamos ali me ajudar na cozinha.



   A sogra arrastou a nora para a cozinha de tal maneira que nem Hermeto viu o fim que levara sua princesa. Pouco se importou, estava ainda na crise de nervos, sacou logo um cigarro do maço e fumou energicamente enquanto tomava a talagadas o café forte.


- Filhinha, isso não se faz. Inquirir um homem dessa feita é pecado, grave, sem perdão ou remissão. Ou você quer perdê-lo ou quer largá-lo, só pode.

- Não! Sabe o que é, Dona Celeste? É que eu não me sinto segura.

- Insegurança nasce é quando a gente está pra fazer a merda que estamos com medo que façam conosco. Disse terminante Dona Celeste e voltou os olhos pro quiabo que picava com uma dedicação absurda e avara, e esqueceu a nora naquele silêncio sepulcral que persegue um náufrago. Agora, minha filha, volte para aquela sala e dê um achego e um cheiro no Mermeto, porque ele deve estar fulo, e me deixe em paz terminar o almoço.


    Volta a feia arrastando-se sobre as pernas tortas e carregando nos ombros todas as culpas do século. Freud, Lacan e Jung curvariam-se impotentes diante de tanta tristeza.


- Bonitinho, me desculpa, tá? - alisando com as unhas a nuca do namorado.

- Vá lá, desculpo, mas só porque você é muito bonitinha.

- Bo-ni-ti-nha? 

- Ah, tenha a santa paciência, Brígida. Vamos largar de lenga-lenga?


   Percebendo a guerra civil instalando-se, Dona Celeste apavorada põe a mesa e ainda tira da adega o melhor vinho da casa.




   No outro dia Brígida acordou achando que era francesa e tinha sobrenome Bardot. Arrumou-se minuciosamente. Longa espera até escolher o vestido, as meias e os sapatos. Maquiou-se como se fosse em visita oficial a Casa Branca. Saiu de casa numa marcha que achava elegante mas, a bem da verdade, lembrava bastante os cavalos do Sete de Setembro. Procurou ávida por uma construção perto de casa. Nenhuma. Nem um martelo batia, nenhuma betoneira rangia. Não se ouviu nem um solitário assovio sertanejo. Tomou o primeiro ônibus para o Centro, no lotação ensaiava todos os gestos sensuais possíveis. Nenhum olhar, nem de pena. Melancolia profunda. Desceu abatida no primeiro ponto cheio que avistou na esperança de uma cantada barata, um cochicho. Nem dos olhares foi digna, um torpor cinzento tomava conta da multidão.


   Longe ouviu o som seco de uma britadeira. Em desespero arrancou os sapatos e correu em direção aquilo que era música para seus ouvidos. Passou sobre tudo que estava pela frente, esbarrou nas velhas senhoras sem pudor algum, jogou no chão o policial e pouco se importou com a gritaria de desrespeito à autoridade, fez sambar dentro de um bueiro toda a quinquilharia de um hippie fedegoso, mas finalmente achou o templo onde livraria todo seu sofrimento. Empertigou-se, elevou o queixo e triunfante avançou sobre a calçada protegida pelos tapumes, na expectativa de um arrulho desrespeitoso que fosse.



    Silêncio profundíssimo. As marretas batiam impiedosas, rangia a betoneira, britadeiras socavam forte o chão, as latas de cimento subiam tonitruantes corda acima. Era a sinfonia fúnebre da uma mulher que não foi notada. Do cavo de toda a mudez, Brígida buscou forças para o mais convidadito fim. Jogou-se, lembrando-se das aulas de balé, num grand jeté de encontro ao ônibus que descia devorando o asfalto e não fez muito esforço para engolir a bailarina.



   Uma multidão ajuntou-se em alarido ensurdecedor.



domingo, 22 de maio de 2011

O último dia de Notini.

Notini sentou-se à mesa, hirto e lacônico, como fazia todos os dias. A garçonete, feia e velha, chegou-se a ele, sempre como quem nada quer, e perguntou – sabendo a resposta – se aceitava algo. Fora assim desde o primeiro dia que aquela figura sentara-se ali até o último, no caso aquela manhã. O feiúme da velha, desde sempre velha, senhora assustava, mas logo o café sanava aquele desespero. Sempre dois dedos de café. Se passava, Notini cuspia o restante numa planta dessas que ornam e protegem essas bibocas de Centros. De toda a feiúra do local, salvava aquele canto cativo em que sentava todas as manhãs. A toalha salpicada de furos fumígenos e borras de molho inglês.

Amara mulheres como quem escolhe um sapato na vitrina, escolhia pelo visto. Tivera mancas, zarolhas, caolhas, pernetas. Daquelas que cambam pra direita, pra esquerda. Mas sempre amara entregue, por mais bizarra que fosse a mulher.

Apesar de tanto amar, Notini morria sozinho naquele dia. Amou todas em silêncio, nunca mais que os triviais aconchegos de ombro, carinhos fortuitos ou crispar de sobrancelhas. Tudo muito frugal. Pensar em casamento ele sempre pensou, mas as mulheres eram ou muito ou pouco. Em namoro, jamais. Era tempo de menos. Em noivado? Que nada, Notini queria logo o casamento, talvez por isso morria dialogando com os próprios sapatos todas as manhãs.

Era o nobilíssimo sujeito meio-termo, o sorriso de bêbado que não tem dona. Escanhoado à espartana, nunca passava as pesadas portas do apartamento com uma leve penugem que fosse cobrindo-lhe o rosto. Era um obsessivo sem tamanho e bipolar crônico. Pela manhã um dândi, à tarde um segurança eslavo de prostíbulo e à noite um poeta incoformado. Media os passos pelos riscos no cimento e contava os dedos dos parceiros de assento no ônibus até ter certeza que eram dez.

No dia em questão contara 11 dedos nos pés de uma bela loura. Apaixonou-se. Jamais havia visto uma mulher com onze unhas pintadas a verniz vermelho. Foi cabal, sacou logo todo o repertório de cantadas e escolheu uma:


- A senhorita mora no bairro Castelo?


- Moro - respondeu atônita a Cicciolina do grotão.

- Tudo se explica.

- Hum - fez com um misto de pena e leve interesse.

- Pelo horário imagino que acaba de sair do serviço.

- Sim - secamente.

- Gostaria de dois dedos de café?

- Prefiro vinho à meia-luz - disse lancinante com um olhar típico de atriz pornográfica aposentada. Cravou os dentes superiores no lábio inferior e fez biquinho. O ápice de toda sua  cavernosa sensualidade.

- A minha casa ou a sua? - Ousou o poeta.

- Se houver banho quente e uma cama de lençóis de linho branco, a sua - agora dizia com o furor de uma colegial.

- Banheira de louça francesa do século XIX e cama entalhada de mogno.

- Lençóis de linho puro?

- Algodão.

- Serve - já refeita a pose de diva falida.

Fez-se um silêncio enorme no ônibus suburbano. Batida mortífera logo adiante. Três mortos e o trocador fazia questão de tornar público que entre eles constavam um decapitado e um corpo nu. "Que desperdício" comentou com o homem barbudo e cheirando a lavanda. "Se eu fosse Deus não deixava morrer", completou.

- Meu ponto é o próximo. Por Deus, decida-se, homem.

- Desça dois pontos adiante. Passamos na padaria, compramos o vinho, a panhoca dormida e um lata  de atum. Nada mais. Tenho fundos, mas têm uma causa nobre que os espera.

Saltaram de braços dados, como um idílico casal. Ele olhava incessante para o décimo primeiro. Imaginava as fantasias mais variadas.

- Entre e compre, fumarei um cigarro. Diz a musa retirando o maço da bolsa.

- Nem um beijinho? - Ele mesmo espantava-se com essa novidade: a humilhação.

- Deixe de tolices, velhote. Compre as coisas e vamos subir para o seu apartamento. Quero ver em que espécie de toca se esconde uma criatura como você.

Entrou, pegou, pagou e saiu sem uma palavra sequer. Seguem até a porta do prédio sem moverem os lábios em qualquer direção, nem os olhos. Ela ansiosa pelo palácio, ele ansioso por pele.

- Boa noite, senhor Notini - diz o pobre cão que faz papel de porteiro.

- Boa noite, Alvares.

Abre a porta pesada de túmulo do apartamento e entram.

- Vou esquentar a panhoca, pegar as taças e abrir o enlatado. Dois palitos.

- Hum.

As paredes eram cobertas por um papel dos tempos que quem mandava ainda usava barbas, mas ainda havia alguma nobreza naquele apartamento. Os móveis todos de mogno e entalhados a mão cheiravam a dinheiro escondido em algum canto. Sobre uma mesa grande havia uma montanha de livros e copos vazios, sinal de que mulher não regia a casa há muito. Dependurados vários quadros de ancestrais figuras.

- "Quem pagará as flores quando eu me for" - aparece Notini tentando ser poético.
- Não sei se pagarei, mas deve haver alguém que goste de você ou queira puxa-saco.

- É sempre dura assim? - Mais um rompante de idiotia e arrastar aos pés que ele não conhecia no seu ser

- Dá cá o copo - tomou o vinho numa talagada, resquício da pobreza que não se anulara dentro do templo vitoriano que era a casa de Notini.

Na cabeça de nosso pitoresco personagem houve uma saraivada de hormônios, segurou firme no braço da princesa do latão e do cobre e forçou-lhe um beijo desajeitado com tentativas de ser cinematográfico. A pose foi um monólogo.


- Vamos, me mostre os lençóis de algodão... - Disse fugindo do mar de saliva.

Entraram para o quarto e por trás fecharam a porta, para forçar uma intimidade de casal, afinal sabia que seria sua primeira e última noite com uma mulher de revistas, com o brinde do décimo primeiro dedo.

Naquele dia Notini acordara com a ave do mau agouro pousada no ombro. Uma tristeza profunda. Pra animar a alma jogou no bicho, tomou um bourbon falsificado num café desses que as pessoas de alta cultura frequentam, comprou dois sapatos novos e inscreveu-se numa aula de tango (viu uma resenha de "O último tango em Paris" numa revista e achou ser preciso só dançar para conseguir chegar ao que era mostrado na capa). Fez o escambau para sair da sorumba.

A Nona de Beethoven soava desde o quarto. Súbito, um grito de horror. No justo momento que Notini ia beijar o fulgor de sua paixão, a décima primeira unha envernizada, a delicada atriz falida chuta-lhe o queixo e a cabeça do mancebo voa de encontro à panhoca e as taças que estavam sobre o toca discos. Junto ao pão e o vinho veio o sofrimento convulsivo dos que morrem à cata dos desejos. O LP arranhado tragicamente repete o clímax do terceiro movimento da Ode à Alegria:

"Quem já conquistou uma mulher amável 
rejubile-se conosco!"